Entre Lentes e Letras: um encontro de olhares do Sertão
O projeto de escrita criativa “Entre Lentes e Letras: um encontro de olhares do Sertão”, desenvolvido pela professora Ana Júlia Lima, celebra a união entre imagem e palavra, trazendo à tona as vozes e os olhares dos jovens escritores de Juazeiro. Inspirados pelas fotografias de Euvaldo Macedo Filho, os estudantes do 2º ano do Ensino Médio do CIEB Rui Barbosa, por meio do Programa Educa Mais Bahia, transformaram momentos capturados pelas lentes em narrativas que refletem a riqueza e a diversidade do Sertão. As produções textuais variam entre prosa e poesia, ecoando sentimentos, memórias e histórias inspiradas nas paisagens, personagens e cenários do cotidiano sertanejo.
O reflexo da vida em uma pescaria
Eu sou como um pescador
Paciente, lutador,
Esperando o pão que Deus mandou
Eu sou como um rio
Encantado e frio
Como a água acariciada pelo vento
Em alto relento
Sinto-me como o Sol
Iluminado com o seu farol
Sou quieto como as pedras
Encalhadas na areia
Sem eira nem beira
Sinto-me espelhado
Como as águas de um riacho
E ainda assim,
A minha pescaria não acabou
Só começou.
Por Miguel Kaioder Mesquita
O Sanfoneiro
Um sanfoneiro arretado
No seu canto isolado
É bonito de ver a cultura do danado
Mais bonito ainda
É ver o instrumento ser tocado
Na barquinha ou no porto
Ele faz o seu trabalho.
Por Miguel Kaioder Mesquita
Cansaço
Hoje estou aqui, velho, cansado e cheio de dores, sentindo os balanços do meu caro amigo barco. Após tantos anos de trabalho para ajudar minha família, vejo que nem conheço meus filhos e que, talvez, todo aquele carinho tenha sido tirado pelo rio, junto com as entregas. Com isso, olho para dentro de mim e me pergunto se valeu a pena perder minha vida para ganhá-la. Hoje, meus netos já são grandes e me desconhecem do mesmo jeito... Valeu a pena?
Por Pedro Henrique Dourado
Reflexos
Nesta tarde quente e ensolarada, perco-me e encontro-me nas correntes deste traiçoeiro rio. Mesmo parado há horas, consegui pouquíssimos peixes, de modo que não sei se conseguirei manter minha família. Já estou aqui faz tanto tempo que meu reflexo há muito se misturou com as miragens do rio. Quanta sede... Quanta fome... No desespero dessa margem, pergunto-me se não valeria mais a pena nadar e encontrar meu caminho no fundo do rio.
Por Pedro Henrique Dourado
A Solidão
Aqui, nesta orla vazia, perco-me entre as correntezas do rio abaixo e os redemoinhos do meu coração. Onde está minha mãe? Pergunto-me constantemente o porquê de ela ter me deixado ir... E quem sou eu? Entre ondas e reflexos, nem sei mais quem sou; serei feliz ou fria e traiçoeira como a água do rio? Já nem sei mais quem sou.
Por Pedro Henrique Dourado
Peso
Dia após dia, sinto o peso do mundo nos ombros. Tanto trabalho por tão pouco... Sei que tudo o que faço é pelos meus filhos, mas, meu Deus, vale mesmo a pena me arrebentar todo santo dia sem ao menos garantir-lhes um futuro? Passou-se tanto tempo desde que comecei que guardo poucas memórias do que fazia antes disso. Sinto-me como se só servisse para carregar peso e mais peso. As únicas reais lembranças que restaram estão nas cicatrizes das minhas costas.
Por Pedro Henrique Dourado
Raízes
Já estou aqui há tanto tempo que nem lembro mais quando nasci, foram tantas lembranças, tantos sorrisos, abraços e até mesmo tempestades. Fincada, vi o mundo mudar sem nunca ter realmente perdido a minha essência. Apesar de todas as promessas de amor em mim gravadas, sempre me mantive aqui, com as minhas folhas balançando ao vento, como lindos e frescos algodões. Por viver próxima ao rio, nunca tive reais problemas para beber, pois minhas raízes sempre me mantiveram aqui, viva e forte. Com todas as mudanças no mundo, penso se talvez algum dia me matarão pelo simples prazer de algum homem rico. Logo eu, que vi milhares de histórias acontecerem bem em minha frente, não passo de um mero obstáculo para alguém com o dinheiro e sem metade da sabedoria que meus galhos guardam.
Por Pedro Henrique Dourado
Correnteza
Aqui, faço-me o tudo, sou bebida, energia e até mesmo habitat. O que me faz pensar: se sou tão importante para todos ao meu redor, por que tanto me maltratam? Tanto de mim já morreu para que eles vivessem, mas hoje vejo que talvez nunca entenderão o porquê de eu tomar tantas almas para mim. Não sou traiçoeiro, apenas tomo o que me foi tomado.
Por Pedro Henrique Dourado
História de Pescador
Ao estarmos no barco, com o som da água batendo, temos que estar firmes e atentos para obter nossos ganhos do dia. Como garantir a comida da minha família com um preguiçoso dormindo no trabalho? A água bate no casco, densa, ritmada, como quem chama para a labuta, e ele não acorda, já está nas últimas de sono. Parece que dorme como quem pesca sonhos. Há muito serviço pela frente, redes para lançar, peixes para contar... Acabarei dormindo junto a esse vagabundo.
Por João Gabriel Rodrigues
Água Leva
O rio perguntava-se, às vezes, o sentido de tanta correnteza. Aonde ia? Por que precisava seguir? Todos diziam que sua função era levar, arrastar e nunca parar. Mas para quê? Ele via as margens passarem rápido, os rostos, as pedras, as raízes que se debruçavam para beber um pouco dele. Mas o que, afinal, ele ganhava com isso?
Em dias de cheia, ele sentia que sua força era imensa, invencível, mas o peso de carregar sempre o mesmo caminho o fazia se perguntar: seria livre? O rio queria se perder, talvez, em outros caminhos, descobrir o que havia além dos mesmos galhos e das mesmas curvas. Será que um rio pode ser mais do que um rio? Mas então vinha uma mulher. Sentava-se na margem e, quieta, olhava para ele com olhos tristes, como quem também traz perguntas sem respostas. Naquela troca silenciosa, o rio percebia que talvez sua função não fosse entender, mas acolher. Percebia que, enquanto carregava folhas, dores e sonhos soltos, sua correnteza, mesmo sem propósito claro, fazia sentido para aqueles que o viam passar. E assim, com a mulher, o rio se acalmava, entregava-se ao movimento, aceitando que talvez seu sentido fosse simplesmente seguir, como uma respiração eterna, em que levar é viver.
Por Pablo Gabriel Carvalho
Cada Cabeça é um Mundo
Cada cabeça, uma história – e que histórias. Quando estamos no meio do dia a dia, quase nunca pensamos nisso, mas cada pessoa que cruza nosso caminho carrega um universo próprio, cheio de momentos, escolhas e segredos. É só olhar ao redor. No ônibus, aquele senhor de barba grisalha encarando a janela talvez esteja pensando em alguém que ama ou se lembrando de uma vida que já ficou para trás. Ao lado dele, a jovem com o fone de ouvido pode estar sonhando com um futuro diferente, algo que talvez nem saiba bem o que é. Na fila da padaria, enquanto esperamos pelo nosso pão, cada pessoa ao redor tem seu próprio mundo acontecendo. O balconista que nos atende com pressa, quantos problemas e sonhos guarda na cabeça? Ele mal levanta o olhar, mas, talvez, ao final do turno, ele vá buscar os filhos na escola, ou talvez esteja enfrentando alguma preocupação que ninguém vê. E o casal que se olha em silêncio no balcão do café? Será que estão no começo do amor ou na tentativa de reencontrar algo que se perdeu com o tempo? É fascinante perceber o quanto a vida é feita desses encontros breves e misteriosos. Cada rosto na multidão é um livro, com páginas que jamais conseguiremos ler. E, pensando bem, talvez nem precisemos. Talvez a beleza esteja justamente em cada um carregar sua própria história, em tudo o que não cabe nas palavras, mas que dá cor e profundidade à existência. Afinal, cada um tem o seu enredo, e isso é o que faz da vida essa trama tão rica e humana.
Por Angelo Gabriel da Silva
Álcool e Música
Maria e Paulo, dois compositores, chegaram ao bar apenas para beber. Contudo, o dono os viu e pediu que tocassem uma música. Envergonhados, tomaram duas doses de Pitú para criar coragem e conseguiram a cantar. Para a surpresa de ambos, o público ao redor se emocionou ao ponto de chorar. Será que aquelas pessoas estavam ali apenas para beber ou também para esquecer seus problemas?
A história de Maria e Paulo foi marcada pela luta: eles começaram a cantar para juntar dinheiro para o tratamento do filho, que sofria de uma doença grave e necessitaria de uma cirurgia de alto custo. A esperança de resolver a situação os levou a uma gravadora, onde pretendiam vender suas músicas, mas acabaram sofrendo um golpe e perdem tudo. Já sem esperanças, decidiram ir ao bar para afogar as mágoas. Ali, no entanto, algo inesperado aconteceu. Suas canções tocaram os corações dos clientes, que, aos poucos, foram pedindo mais. Misturando álcool e música, aqueles frequentadores estavam ali em busca de amenizar as dificuldades do dia a dia. Até que, em uma das noites, alguém perguntou a Maria e a Paulo o que os motivava a cantar. Foi então que revelaram a situação do filho. A história comoveu tanto os clientes do bar que, juntos, organizaram uma arrecadação e conseguiram juntar o valor necessário para a cirurgia. Meses depois, com o filho recuperado, o casal voltou ao bar, agora com a presença do menino para agradecer.
Será que bebemos apenas para esquecer ou para nos embriagar? E a música? Não seria ela, afinal, uma forma de acalentar a dor e nos reconectar com o que há de mais humano?
Por João Pedro Barros