A Terceira Margem do Olhar
Por Elizabeth Moreira
O que se pretende?
Tomar da obra de Euvaldo Macêdo Filho, o moço juazeirense que viveu apenas 30 anos, de 1952 a 1982, e apresentá-la sob um viés mais analítico, mergulhando na admiração que ela sempre me causou. Um artista antenado com a modernidade e cioso de sua produção.
Nos limites deste pequeno ensaio, escolhi especificamente quatro textos, aqui tratados como imagens para reprodução. Mas textos, assim considerados, porque abertos a múltiplas leituras. Fragmentos de olhares, instantes e palavras na dinâmica e significação da parte para o todo e de sua expressividade dialógica.
Na escolha do que considerei apropriada, minha subjetividade – e a do artista em referência – evidencia também um tempo que se faz circular: fala do passado, que se torna presente até mesmo nos futuros acessos e compartilhamentos do acervo de Euvaldo, circulando em computadores e variadas mídias. Recortes de uma herança artística das margens sanfranciscanas, legitimadas pelo olhar acadêmico do agora, de um projeto que nos comove porque finalmente se faz realidade e salvaguarda um acervo único e fundamental.
Não é só registro, memória de uma época. São instantes, instantâneos, fulgurações em lampejos únicos. E isso faz a diferença, na arte e na consciência com que seu autor sempre respeitou seu trabalho.
O Texto A foi escrito por Euvaldo numa das páginas de um caderno de desenho, ali desenhado como notas e lembretes de e para seu fazer artístico. Brincando com as cores de canetas hidrográficas – e já constatamos seu olhar voltado para a visualidade intrínseca de suas produções –, Euvaldo confessa e afirma enfático seu maior interesse: a foto, produto da fotografia, mas vista como poesia.
Poesia em seu sentido mais amplo, questões que se ampliam em nossa cultura e que não são fáceis de serem definidas. A possibilidade de significação gerada pela foto é que nos dirá de sua poeticidade. Muito além do aspecto primário, indicial, esteticamente nos transporta para o simbólico.
A foto, vinda de uma máquina típica de nossa modernidade pós-industrial, tem no manuseio do fotógrafo um olhar que se transfigura poeticamente. Um recorte da realidade eternizado no tempo do clique e da fotografia analógica, numa duração que envolve vários procedimentos até chegar à revelação. Revelação que desvela a luz do momento único, um tempo irreversível daquele instantâneo.
Texto A
Texto B
O Texto B, uma foto denominada Sobre as águas, me chama a atenção pelo enquadramento horizontal. Como as águas que correm sempre adiante, a criança buchuda brincando em sua boia/barco faz de seu banho o registro significativo do que era a infância nas margens de nosso rio São Francisco em décadas do outro século. Nua, sua imagem complementa o volume arredondado da própria boia, essa enorme câmara de ar; ela é o barco de si mesma, menino do rio, cujos braços agitados movimentam seu barco de brincadeira e espirram água sobre nós, sobre o fotógrafo talvez?
É nessa horizontalidade que vemos a sequência narrativa: a criança continua a brincar, navegando à frente. Poucas brincadeiras existem hoje com esta naturalidade da pobreza vivenciada nas margens do grande rio. Assim também a luz brilha na direção do menino e dá forma e movimento na água. O olhar do fotógrafo conseguiu no detalhe captar o instante poético da infância livre e prazerosa.
Texto C
O Texto C, uma foto “No quadro”, enquadrada na vertical, traz o fotógrafo e nosso olhar receptor para dentro desta sala, onde a janela aberta se abre para múltiplos entendimentos. A ambiguidade se faz fisicamente. A cadeira está vazia e centralizada. As cortinas amarradas e suspensas descortinam o exterior. Ficamos ali um momento, em pé, como Euvaldo.
A dinâmica da paisagem, um subúrbio de tantas alegorias, perspectiva do que se constrói e se destrói, alarga-se na luz de outro quadro dentro do quadro. Uma geometria que vai dialogar também com os textos de seus poemas. O que realmente está em foco? O que vemos?
Vemos um transeunte, um senhor cujo chapéu esconde sua cabeça e que olha por onde pisa, mas não nos vê. Afinal, o que ele estará vendo? Continuará a caminhar e passará sem dúvidas para o lado direito da foto. Mais do que descritivo, o quadro se configura dinamicamente. Quantos mais passarão por esta janela? Ou ela já se fechou no tempo simbólico da memória?
Monocromático será? Quanta luz e quantos tons de cinza se interpenetram e transmitem informações. Espaços que se abrem em diversos tons e enquadram o quadro... Terá o fotógrafo pensado em tudo isso no apertar rápido do clique, do momento? O registro ficou presente, a análise, as metáforas e alegorias ficam para depois. Decodificar é possibilitar também um encontro com o autor, daquilo que ele nos possibilitou interpretar e sentir.
Texto D
Assim é a arte. E assim se faz no texto poético daquele que se afirma também um “poeta porr êta” no Texto D, de seu único livro de poemas: Cauim de Curare. Um poema imagético, em que as palavras são cortadas, ressignificadas. Significados que geram mais significados, identificáveis na visualidade concreta do poema.
É preciso pois ler/ver com atenção o poema para entender o sentido de um “poeta porr êta”, na piração dos anos sessenta, das aventuras do Tropicalismo e do Cinema Novo. Porreta, tão bacana na gíria baiana, em que o eu poético se coloca “zanz ando” em silêncio nas “madrunadas”. Um nada existencial que atormentou o poeta em seus mistérios. Um cauim de curare, desnudado como seu olhar de fotógrafo nesta geografia marginal onde se situou, amou e viveu intensamente.
Através destes textos, criamos uma consciência de linguagem que nos permite distinguir aquilo que é próprio do signo, de sua materialidade visível, para sua significação cultural como representação e símbolo de um trabalho artístico. Um investimento ideológico subjaz a esta compreensão. Daquele fotógrafo autodidata que pôde ver além de projeções meramente descritivas ou registros históricos para o significado humano de um tempo que se diluía na opressão cotidiana destas margens tão simbólicas e em rápida transformação econômica e social.
Euvaldo fotógrafo, Euvaldo poeta. Em 1985, já falava da imortalidade de Euvaldo, nesta unidade fundamental que se funde também na pessoa, no amigo. De nossa profunda saudade, dessa ausência cedo demais. Estendendo-se no respeito e admiração de sua amada companheira Odomaria. Como disse o poeta Drummond, não adianta adjetivar os mortos, nada os substitui. Para eles não existe mais língua portuguesa ou qualquer outra. Ausência de comunicação. Silêncio. Ou o sonho?
tudo começou quando? por acaso como pinta uma foto que a gente nem espera. o segundo. tudo. muito como eu sei que é tudo. tudo é mágico como viver é muito tudo. o olho e o relâmpago: clic. o bater das pálpebras, a batida do coração. olhar e ver são duas coisas muito diferentes. olhar até ver até crer. Fé. ou um lance de olho de lince.
fotografar: sensibilidade, bom gosto, etc. etc. fotografia: magia, ato de bruxo, bruxaria de amor. como vê a natureza o olho de Deus? fotolhar, fotografar, fotogravar, mostrar o.
a câmara – para mim – é um instrumento mágico onde gravo a fuga dos instantes no tempo. fotografia: o mágico encanto. não sei se era Claudel quem dizia que, se o mundo havia de ser salvo, seria pelos poetas. o grande defeito da fotografia é que ela foi inventada muito tarde. você não gostaria de ver a cara de Napoleão depois de Waterloo?
eu considero a imagem tão importante quanto a palavra. a fotografia como linguagem de expressão. Ela, a fotografia, será a forma de arte do futuro. meu olho é meu talento: vejo e clic.
as fotos perdidas quem sente?
era só isso.
tudo é invenção.
a terceira margem da alegria.
ainda sonho.
Elisabet Gonçalves Moreira
Petrolina, 19 de abril de 2018.